quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Psiquê

Tinha os pés e a consciência leves. Bailava através da existência feito folha ao vento, ensaiando voos despreocupados sobre a relva verde da vida, que tinha toda pela frente ainda. Sua figura se destacava em meio à massa de corpos que se acotovelavam pelas calçadas do centro, deslizando suave através da multidão. Pousou numa banca de flores, detendo-se bom tempo a escolher minuciosamente um ramalhete, com carinho especial. Então, carregada de flores sob o céu indecentemente azul daquele dia, voltou ao seu caminho, feito uma miragem que se deslocasse na aridez da tarde.

A luz oblíqua do ocaso já se esvaía quando ela saiu pelo portão do campo santo. Andava com a mesma graça, embora seu ar jovial estivesse ligeiramente embaçado. Não parecia triste, apenas mais consciente da consistência das coisas a sua volta. Nos olhos levemente marejados esboçava um sorriso de quem divaga em lembranças. Seus pés continuavam leves, mas tocavam o chão.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Silêncio e fumaça.

Saiu do bar em câmera lenta, levando consigo uma garrafa de conhaque de alcatrão, que foi a única que conseguiu convencer o balconista a vender. Não tinha nenhuma pressa, pois era uma longa caminhada até sua casa. Fumava os cigarros mais amassados que já se viu, um atrás do outro, acompanhando o fluxo de bebida. A despeito do estado lastimável, mantinha um bom ritmo, deixando um rastro de silêncio e fumaça. No último quarteirão secou a garrafa. A partir daí estava por conta própria...

Sete passos. Era mais ou menos o espaço que o separava da porta quando estancou. Apesar de sua cabeça estar muito mais distante. Isso e a embriaguez o mantiveram plantado ali um bom tempo, como se míseros sete passos fossem uma imensidão repleta de obstáculos a ser atravessada. Tateava no bolso o molho familiar de chaves, como se pudesse pescar a consciência e a realidade com elas em meio ao mar confuso de sentimentos que se agitava em sua mente.

Tirando forças de alguma reserva oculta, se empertigou e caminhou o menos trôpego que pôde. E ao abrir finalmente a porta, a realidade solidificou-se tão dura como ele temia. O apartamento vazio estava silencioso como um túmulo. Não tinha sido um sonho ruim. Chorou até dormir, encostado num canto da sala, enquanto lá fora o sol brilhava para quase todos.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Dia encoberto.

Pela janela entrava uma brisa sem vergonha, a água do café fervia. A manhã que se anunciava trazia uma promessa velada, mas tão tímida que se fazia indecifrável. Precisava de um banho, a noite em claro não cancelara os compromissos do dia... Fechou a porta, uma volta na chave, como sempre. Ignorou a escada e o corredor cotidianos, e até a luz difusa do dia nublado ao sair para a rua. Na turbidez que preenchia sua mente apenas seu destino era claro. O silêncio coletivo no ponto de ônibus sendo aos poucos substituído pelo murmúrio incessante das conversas e do trânsito crescente; a beleza fugidia de um raio de sol que escapava das nuvens pra iluminar uma cena, como um efeito de palco; o despertar ruidoso da cidade, feito água levantando fervura; apenas borrões indistintos no seu percurso.

A casa tinha uma fachada neocolonial, de cor indistinta, dando impressão de que não era pintada há muito tempo. O portão de ferro fundido só ampliava esse ar de idade e, pelo estado da ferrugem, de certa decrepitude. Tudo isso reforçado pelo jardim malcuidado e sombreado por duas grandes arvores. Entrou com passos firmes deixando o rangido e o baque metálico do portão atrás de si, como se fossem um sinal de desligamento com o resto do mundo. Bateu três vezes à porta. Nunca mais se teve notícia sua...